sexta-feira, 3 de abril de 2009

As Metamorfoses de Piktor

O jovem Piktor entrou no Paraíso e se encontra diante de uma árvore que era ao mesmo tempo homem e mulher. Olha-a com veneração e pergunta: "És porventura a árvore da vida?". Quando no entanto em lugar da árvore, responde-lhe a serpente, Piktor volta-se para continuar seu caminho. Observa tudo com atenção: tudo o encanta no Paraíso. Pressente claramente que se encontra na origem, na fonte da vida.
Vê outra árvore que é agora ao mesmo tempo sol e lua. E Piktor pergunta: "És porventura a árvore da vida ?" 0 sol confirmou rindo; a lua sorriu.
Flores maravilhosas admiravam-no, flores de cores diversas, flores que tinham olhos e rostos. Algumas riam francamente , outras motejavam. Algumas não riam nem se moviam, permaneciam mudas, ébrias, mergulhadas em si mesmas, envoltas no seu próprio perfume, como sufocadas. Uma flor cantou-lhe a música do lilás; outra, uma canção de ninar azul escura. Uma flor tinha os olhos como safira dura; outra recordou-lhe seu primeiro amor; uma outra, a cor do jardim da sua infância, a voz de sua mãe e seu perfume. Uma ria, outra pôs a língua de fora, uma linguinha curva, rosada que se aproximou dele. Piktor estendeu sua língua para tocá-la. Sentiu o sabor acre e selvagem, com gosto de uva e de mel, e também como o beijo de uma mulher.
Ali, entre todas as flores, Piktor, sentiu-se repleto de nostalgia e receio. Seu coração bateu fortemente, como um sino, ardendo, ansioso por algo desconhecido,
Piktor viu então um pássaro deitado na relva, brilhando de tal maneira que parecia, possuir todas as cores. Piktor perguntou-lhe :"Oh pássaro, onde se encontra a felicidade ?'
— A Felicidade ? Mas em toda a parte: na montanha e no vale, na flor e no cristal,
O pássaro sacudiu alegremente suas penas, moveu o pescoço agitou a cauda, virou um olho e permaneceu imóvel sobre a relva. Repentinamente havia-se transformado numa flor; as penas eram folhas as patas, raízes. Piktor observou-o maravilhado.
Quase em seguida porém a flor-pássaro sacudiu suas folhas; cansara de ser flor e já não tinha raízes. Projetando-se languidamente para o alto, transformou-se em borboleta, movendo-se sem peso, toda luz.
Piktor maravilhava-se ainda mais. 0 alegre pássaro-borboleta voou em círculo em torno dele, brilhando como o sol; deslizou para a terra e como um floco de neve permaneceu ali, junto aos pés de Piktor . Respirou, tremeu um instante com suas asas luminosas e, repentinamente, transformou-se em cristal, de cujos cantos irradiava uma luz vermelha. Maravilhosamente brilhou entre a relva, como sinos gue tocam para uma festa.
Assim, brilhou a jóia...
Parecia porém que seu fim se aproximava, que a terra a atraía e a pedra preciosa foi diminuindo com rapidez, como se quisesse penetrar na relva.
Piktor, levado por um desejo imperioso, apanhou a jóia em suas mãos e a segurou. Com fervor admirou sua luz mágica; seu coração parecia transpassado de um desejo ardente por todas as aventuras.
Foi nesse instante que do galho de uma árvore morta deslizou a serpente e lhe sussurrou no ouvido; "A jóia se transforma no que quiseres. Dize rapidamente teu desejo, antes que seja tarde".
Piktor temeu perder a oportunidade de alcançar a felicidade. Com pressa disse a palavra secreta. E ..transformou-se numa árvore. Porque árvore era o que Piktor sempre desejara ser. Porque as árvores são repletas de calma, força e dignidade.
Cresceu penetrando suas raízes na terra e levantando sua copa para o céu, folhas e galhos novos surgiram do seu tronco. Estava feliz com isso. Suas raízes sedentas absorveram a água da terra, enquanto as folhas balançavam-se no azul do céu. Insetos viviam em sua casca e, no seu pé, as lebres e o porco-espinho encontravam abrigo.
No Paraíso, em sua volta, a maioria das coisas e dos seres se transformavam na corrente enfeìtiçada das metamorfoses.Viu feras que se transformavam em pedras preciosas ou que saíam voando como pássaros radiantes. Junto dele várias árvores desapareciam subitamente: mudavam-se em rios; uma se fez crocodilo, outra foi nadando, cheia de prazer, transformada em peixe. Novas formas, novos jogos. Elefantes transformaram suas roupagens em rochas; girafas se transformavam em flores monstruosas.
Mas ele, a Árvore-Piktor, permanecia sempre idêntica; não podia transformar-se mais.
Ao perceber isso, desapareceu sua felicidade e, pouco a pouco, começou a envelhecer, assumindo o aspecto cansado, sério e ausente que se observa em muitas árvores velhas.
Da mesma forma, os cavalos e os pássaros os seres humanos e todas as criaturas que perderam o dom da metamorfose, decompõem-se com o tempo, perdem sua beleza, enchem-se de tristeza e de preocupação.
Certa vez, uma menina se perdeu no Paraíso. Sua pele era vermelha e seu vestido azul. Cantando e dançando, aproximou-se da árvore-Piktor. Alguns macacos espertos riam-se alegremente atrás dela; os arbustos roçavam seu corpo com seus galhos, as árvores lançavam-lhe flores ou frutos, sem que ela percebesse. E quando a árvore-Piktor viu a menina, foi tomada de uma desconhecida saudade, de um imenso desejo de felicidade. Sentiu como se seu sangue gritasse: "Pensa, recorda hoje tua vida inteira, descobre um sentido. Se não fizeres isso será tarde demais e nunca mais serás feliz ;
E Piktor obedeceu. Recordou seu passado, seus anos de adulto, sua partida para o Paraíso e, sobretudo, aquele momento que precedeu sua transformação em árvore. Aquele maravilhoso instante em que aprisionara a jóia mágica entre suas mãos. Naquele momento, como todas as metamorfoses eram possíveis, a vida palpitava poderosamente dentro dele. Lembrou-se do pássaro que havia rido e da árvore sol e lua, Pareceu-lhe que naquela ocasião esquecera algo, deixara de fazer alguma coisa e que o conselho da serpente fora fatal.
A menina escutou o ulular das folhas da Árvore-Piktor, seus galhos murmurantes. Olhou para o alto e sentiu uma dor no coração. Pensamentos, desejos e sonhos desconhecidos agitaram-na. Atraída por essas forças, sentou-se à sombra dos seus galhos. Pensou compreender que a árvore era solitária e triste, ao mesmo tempo que emocionante e nobre em seu isolamento total. Embriagadora soava a canção dos galhos murmurantes. A menina apoiou-se contra o tronco áspero, sentiu-se comovida e um tremor a percorreu. Sobre o céu da sua alma passaram nuvens. Lentamente caíram de seus olhos lágrimas pesadas. O que seria aquilo ? Por que deveria sofrer ? Por que o coração desejava romper de seu peito, ansiando por alguma coisa além, por aquilo, a beleza solitária ?
A Arvore-Piktor tremeu em suas raízes e com veemência acumulou todas as forças de sua vida, dirigindo-as para a menina num desejo de unir-se a ela para sempre. Ah, deixara-se enganar pela serpente e era agora apenas uma árvore ; quão cego e estúpido fora: Tão estranho para ele fora assim o segredo da vida: Não, porque então teria pressentido obscuramente alguma coisa : E com enorme tristeza lembrou-se da árvore que era homem e mulher.
Foi então que um pássaro se aproximou voando em círculos, um pássaro vermelho e verde. A menina viu-o chegar. Algo caiu do seu bico. Luminoso como um raio, vermelho como o sangue ou como a brasa, precipitando-se sobre a relva, iluminando-a.
A menina inclinou-se para apanhá-lo. Era um carbúnculo, uma pedra preciosa.
Mal segurou a pedra nas mãos, cumpriu-se o desejo que seu coração suspirava. Extasiada, uniu-se e fez-se uma com a árvore, transformando-se num forte galho verde, que cresceu com rapidez até o céu.

Agora, tudo estava perfeito e o mundo estava em ordem. Somente naquele instante fora encontrado o Paraíso. Piktor não era mais uma árvore velha e preocupada. E por isso cantou alto, com força: "Piktóriá Vitória! Havia se transformado, mas alcançara a verdade, eterna metamorfose; porque, de metade, transformara-se em algo inteiro.
De agora em diante poderia transformar-se tanto quanto desejasse.
Para sempre correu pelo seu sangue a corrente enfeitiçada da Criação, tomando parte assim, eternamente, na criação que a cada instante se renovava. Foi peixe, pássaro, homem e serpente, nuvem e estrela; mas em cada forma estava inteiro, em cada imagem era um par, dentro de si tinha o sol e a lua, era homem e mulher. Como rio gêmeo corria pelos países; como estrela dupla atravessava o céu.

(Adaptado livremente da parábola de mesmo nome de Hermann Hesse)

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